É também um filme sobre o perdão, eu falei. O único problema é que a arte imita a vida, mas a vida não imita a arte. Na vida tudo é mais difícil, mais duro, e muitas vezes não há como conversar. Então hoje, passados mais de dois anos da primeira vez que vi o filme, ouvi novamente a entrevista da escritora, o perdão como o lugar do imperdoável, o imperdoável como aquilo para o qual não há conversa que resolva. Ouvi e entendi pois, assim como o filme, eu comecei essa análise muito mais escura, turva, embaralhada, quase embalsamada, de tão mortas algumas partes de mim, a do perdão completamente enterrada, a da esperança e a da confiança perdidas como um náufrago que se vê destituído de sua embarcação. Agora tudo é mais flat, eu disse recentemente, estranhando as sessões, estranhando a mim mesma, estranhando o perdão. Assisti Tre Piani novamente, eu falei, e ultimamente tenho me policiado para não girar o tronco na sua direção para olhar nos seus olhos enquanto falo, para me manter reta no divã, encarando aquele quadro que a cada sessão me diz uma coisa diferente e os livros que querem me dizer tudo, sinto vontade de levantar e puxar alguns da estante, tê-los ao meu alcance, sobre o meu colo, cobrindo o meu ventre, as minhas coxas, vi Tre Piani e dessa vez pensei diferente (ainda teimo em chamar sentimento de razão), pensei que a arte imita a vida e que a vida pode sim imitar a arte.
Na primeira vez eu mal percebi a lei que atravessa a tela a quase todo instante, o processo que é usado como remédio e também como marcador do tempo. Freud amava os escritores e a mim me parece muito claro o porquê. Em Não fossem as sílabas do sábado, a protagonista criada por Mariana Salomão Carrara diz que quando se está com muita raiva de alguém ou não se consegue sentir mais nada, ou ambas as coisas, nada é mais eficiente do que iniciar um processo e eu penso em todas as dores, frustrações, mágoas, em todo o desprezo e em toda a indiferença que já circularam pelas folhas e pelos corredores do poder judiciário, as varas de família, em especial, fazendo o que podem para remediar, de forma mais ou menos capenga, a nossa falta de jeito para nos relacionarmos com os outros e para lidarmos com nós mesmos.
Nanni Moretti disse, numa entrevista, que o escritor israelense Eshkol Nevo, autor do livro homônimo do qual Tre Piani foi adaptado, declarou, após assistir ao filme, que ele esperava e cria que aquele filme corajoso permitisse aos que o vissem perdoarem a si mesmos e aos outros e eu penso que isso vale para o filme todo e não só para Lucio, o personagem que centraliza a questão do abuso sexual levantada no filme.
O processo que se instaura em razão do ocorrido entre ele e Charlotte, a neta de seu vizinho Renato, a quem Lucio imputava um suposto abuso da sua filha Francesca, parece transcender a esfera judicial e funcionar como o instrumento que a protagonista de Não fossem as sílabas do sábado descreve, essa coisa que vai lentamente sugar e arrogar para si as desavenças e traduzi-las numa língua que quase não é a sua. No filme, o luto de Giovanna, esposa de Renato, os sentimentos da mãe de Charlotte e a rejeição sofrida por esta são despejados num processo cujo julgamento é o marco do final dos primeiros cinco anos do filme, o qual, ao todo, soma dez. Tal extensão no tempo não existe no livro de Eshkol Nevo, tendo sido introduzida no filme por Nanni Moretti, e eu penso que o interessante aqui talvez seja o fato de que da mesma forma que um processo tem seus ritos e tramitações próprios, com prazos contados em medidas de tempo, a estrutura de Tre Piani é montada sobre acontecimentos de vida e de morte, os quais funcionam como marcos temporais que acometem a todos nós e que nos fazem sentir a passagem do tempo. Antes e depois, divisores de águas.
Uma mulher grávida prestes a parir que é posta em cena atravessando a noite em busca de ajuda para ir até o hospital enquanto um carro em alta velocidade é freado por uma parede, não sem antes matar uma pessoa. Entra em cena a lei, os pais do motorista Andrea, Vittorio e Dora, ambos juízes, ele, no dizer de Nanni Moretti, o personagem que usa a máscara da integridade moral, da lei. Dora, a meu ver, a personagem mais interessante do filme e aquela à qual eu mais me afeiçoei. A rigidez do pai com o filho, o espancamento daquele por este, a escolha imposta a Dora, a escolha que ela faz, as consequências. A morte de Vittorio, marcando mais uma vez a passagem do tempo, dez anos, o encontro de Dora com Luigi, o reencontro dela com Andrea. A minha cena preferida, Dora dentro de um carro telefonando para o número de telefone de sua casa e falando com o marido morto por intermédio da secretária eletrônica, por que, ao longo da vida, nós não nos permitimos mais, ela ouve o bip do aparelho e desliga, mais de uma vez faz isso, como se não fosse possível falar com Vittorio sem um intermediário, como se não fosse possível seguir falando, escutando, sozinha, a própria voz.
Monica, a mulher grávida do início do filme, a solidão, o medo da repetição da loucura da própria mãe. A entrada de Dora em sua casa no momento do primeiro banho da bebê, Monica lhe dizendo que com ela ali as coisas pareciam mais reais, e eu me vejo na cena, sem um terceiro, sem um olhar, sem o outro, a realidade fica inefável, insustentável demais para ser real. Monica e o grande pássaro negro, Monica que sonha, delira, alucina, o cunhado, o sexo, a ausência quase permanente do marido, a segunda filha, será que eu vou conseguir, e ela enlouquece. Enlouquece? Ainda não consigo dissociar a sua loucura da liberdade da dança, da música, da festa que invade os cômodos do prédio de três andares e coloca os seus moradores em outra perspectiva, na rua, como observadores, como pessoas alheias às suas próprias realidades por algum tempo.
Dora, de novo ela, a morte de Vittorio abrindo uma janela para outras formas de vida, para as cores, para o amor. É muito difícil amar com rigidez, venho aprendendo, e Dora me lembra a minha mãe, o que só agora, escrevendo, percebo. A minha mãe diz, que vestido deslumbrante, e no final Dora aparece, solar, com o vestido florido, deslumbrante. O filme termina e pela segunda vez eu me emociono, sem saber de que lugar vem o choro.
O imperdoável, o lugar do perdão.