domingo, 8 de setembro de 2024

O lugar

O vestido florido no final, a rua escura no começo. O perdão é mesmo o lugar dos contrastes. Eu não pensava assim, ou pelo menos não com essas palavras, quando falei com você pela primeira vez sobre Tre Piani. O perdão como o lugar do imperdoável, ouvi uma escritora, a Carla Madeira, dizer numa entrevista, mas de outro jeito. Ela disse outra coisa, que em mim saiu diferente, agora, ao escrever. Tudo sai melhor de mim quando escrevo, de forma que às vezes chego a pensar em nunca mais abrir a boca.

É também um filme sobre o perdão, eu falei. O único problema é que a arte imita a vida, mas a vida não imita a arte. Na vida tudo é mais difícil, mais duro, e muitas vezes não há como conversar. Então hoje, passados mais de dois anos da primeira vez que vi o filme, ouvi novamente a entrevista da escritora, o perdão como o lugar do imperdoável, o imperdoável como aquilo para o qual não há conversa que resolva. Ouvi e entendi pois, assim como o filme, eu comecei essa análise muito mais escura, turva, embaralhada, quase embalsamada, de tão mortas algumas partes de mim, a do perdão completamente enterrada, a da esperança e a da confiança perdidas como um náufrago que se vê destituído de sua embarcação. Agora tudo é mais flat, eu disse recentemente, estranhando as sessões, estranhando a mim mesma, estranhando o perdão. Assisti Tre Piani novamente, eu falei, e ultimamente tenho me policiado para não girar o tronco na sua direção para olhar nos seus olhos enquanto falo, para me manter reta no divã, encarando aquele quadro que a cada sessão me diz uma coisa diferente e os livros que querem me dizer tudo, sinto vontade de levantar e puxar alguns da estante, tê-los ao meu alcance, sobre o meu colo, cobrindo o meu ventre, as minhas coxas, vi Tre Piani e dessa vez pensei diferente (ainda teimo em chamar sentimento de razão), pensei que a arte imita a vida e que a vida pode sim imitar a arte.

Na primeira vez eu mal percebi a lei que atravessa a tela a quase todo instante, o processo que é usado como remédio e também como marcador do tempo. Freud amava os escritores e a mim me parece muito claro o porquê. Em Não fossem as sílabas do sábado, a protagonista criada por Mariana Salomão Carrara diz que quando se está com muita raiva de alguém ou não se consegue sentir mais nada, ou ambas as coisas, nada é mais eficiente do que iniciar um processo e eu penso em todas as dores, frustrações, mágoas, em todo o desprezo e em toda a indiferença que já circularam pelas folhas e pelos corredores do poder judiciário, as varas de família, em especial, fazendo o que podem para remediar, de forma mais ou menos capenga, a nossa falta de jeito para nos relacionarmos com os outros e para lidarmos com nós mesmos.

Nanni Moretti disse, numa entrevista, que o escritor israelense Eshkol Nevo, autor do livro homônimo do qual  Tre Piani foi adaptado, declarou, após assistir ao filme, que ele esperava e cria que aquele filme corajoso permitisse aos que o vissem perdoarem a si mesmos e aos outros e eu penso que isso vale para o filme todo e não só para Lucio, o personagem que centraliza a questão do abuso sexual levantada no filme.

O processo que se instaura em razão do ocorrido entre ele e Charlotte, a neta de seu vizinho Renato, a quem Lucio imputava um suposto abuso da sua filha Francesca, parece transcender a esfera judicial e funcionar como o instrumento que a protagonista de Não fossem as sílabas do sábado descreve, essa coisa que vai lentamente sugar e arrogar para si as desavenças e traduzi-las numa língua que quase não é a sua. No filme, o luto de Giovanna, esposa de Renato, os sentimentos da mãe de Charlotte e a rejeição sofrida por esta são despejados num processo cujo julgamento é o marco do final dos primeiros cinco anos do filme, o qual, ao todo, soma dez. Tal extensão no tempo não existe no livro de Eshkol Nevo, tendo sido introduzida no filme por Nanni Moretti, e eu penso que o interessante aqui talvez seja o fato de que da mesma forma que um processo tem seus ritos e tramitações próprios, com prazos contados em medidas de tempo, a estrutura de Tre Piani é montada sobre acontecimentos de vida e de morte, os quais funcionam como marcos temporais que acometem a todos nós e que nos fazem sentir a passagem do tempo. Antes e depois, divisores de águas.

Uma mulher grávida prestes a parir que é posta em cena atravessando a noite em busca de ajuda para ir até o hospital enquanto um carro em alta velocidade é freado por uma parede, não sem antes matar uma pessoa. Entra em cena a lei, os pais do motorista Andrea, Vittorio e Dora, ambos juízes, ele, no dizer de Nanni Moretti, o personagem que usa a máscara da integridade moral, da lei. Dora, a meu ver, a personagem mais interessante do filme e aquela à qual eu mais me afeiçoei. A rigidez do pai com o filho, o espancamento daquele por este, a escolha imposta a Dora, a escolha que ela faz, as consequências. A morte de Vittorio, marcando mais uma vez a passagem do tempo, dez anos, o encontro de Dora com Luigi, o reencontro dela com Andrea. A minha cena preferida, Dora dentro de um carro telefonando para o número de telefone de sua casa e falando com o marido morto por intermédio da secretária eletrônica, por que, ao longo da vida, nós não nos permitimos mais, ela ouve o bip do aparelho e desliga, mais de uma vez faz isso, como se não fosse possível falar com Vittorio sem um intermediário, como se não fosse possível seguir falando, escutando, sozinha, a própria voz.

Monica, a mulher grávida do início do filme, a solidão, o medo da repetição da loucura da própria mãe. A entrada de Dora em sua casa no momento do primeiro banho da bebê, Monica lhe dizendo que com ela ali as coisas pareciam mais reais, e eu me vejo na cena, sem um terceiro, sem um olhar, sem o outro, a realidade fica inefável, insustentável demais para ser real. Monica e o grande pássaro negro, Monica que sonha, delira, alucina, o cunhado, o sexo, a ausência quase permanente do marido, a segunda filha, será que eu vou conseguir, e ela enlouquece. Enlouquece? Ainda não consigo dissociar a sua loucura da liberdade da dança, da música, da festa que invade os cômodos do prédio de três andares e coloca os seus moradores em outra perspectiva, na rua, como observadores, como pessoas alheias às suas próprias realidades por algum tempo.

Dora, de novo ela, a morte de Vittorio abrindo uma janela para outras formas de vida, para as cores, para o amor. É muito difícil amar com rigidez, venho aprendendo, e Dora me lembra a minha mãe, o que só agora, escrevendo, percebo. A minha mãe diz, que vestido deslumbrante, e no final Dora aparece, solar, com o vestido florido, deslumbrante. O filme termina e pela segunda vez eu me emociono, sem saber de que lugar vem o choro.


O imperdoável, o lugar do perdão.

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

E a nave vai*

Sentada à mesa de um bar agito a mão na qual seguro um copo de cerveja e digo que daria um dedo para ter de volta o mundo que existia antes da pandemia. No dia seguinte, sentada numa sala de cinema, penso que daria dois dedos para ter de volta o mundo dos objetos ao qual Aksel, o personagem na casa dos 40 anos de A Pior Pessoa do Mundo, faz referência. Lembro então que também já cheguei a pensar, olhando para a água que escorria do chuveiro, que daria um braço para poder me despedir de uma pessoa que eu amava muito e que morreu de repente. O porquê de viver pensando em me fragmentar eu não sei, mas para me conter escrevo com as palavras que vão sendo continuamente projetadas nas paredes do meu crânio, como se fosse eu também uma tela de cinema.


Tentando curar alguma coisa, escrevo uma mensagem na qual se lê que de ressaca a coração partido o cinema sempre foi o meu lugar de cura. Deborah Colker coloca dois homens, uma grande atadura e Leonard Cohen juntos num palco e tenta curar a dor que vem da doença incurável do seu neto Theo. O jeito que ela tem de tentar se curar me faz chorar.

Leonard Cohen me arremessa no corpo das lembranças de uma grande paixão, vivida na mesma intensidade dos festivais de rock e da pulsação inerente às ruas de cidades como Paris, Londres e Berlim, uma paixão que tirou da cartola o mapa do mundo e o colocou nas minhas mãos, não sem antes me mostrar os truques que eu precisava saber para me orientar sozinha nele. Eu sempre penso na raridade desse encontro.

Num outro planeta, mais concreto e ordinário, um homem pelo qual eu estava me apaixonando me diz, nós temos tempo de sobra para ver se vale a pena viver esse amor, e enquanto ele dizia eu escrevia, pensando, que porra é essa, do que é que ele está falando, quem tem tempo sobrando para esperar viver qualquer coisa, quem dirá um amor?

Os créditos de Dor e Glória sobem e eu saio do cinema soluçando e pensando que se Pedro Almodóvar tivesse feito só esse filme ele já teria sido um dos diretores mais fantásticos de todos os tempos. Os créditos de Tre Piani sobem e eu penso, contendo os soluços, em Dor e Glória. Os dois filmes falam sobre o tempo e sobre o envelhecimento, mas isso eu só percebi depois.

Uma personagem de Tre Piani pergunta ao marido morto, enquanto deixa uma mensagem na secretária eletrônica, por que, ao longo da vida, eles não se permitiram mais. Voltando do cinema ouço no carro aquela música que diz que hoje o tempo voa, amor, escorre pelas mãos, mesmo sem se sentir, e que não há tempo que volte, e novamente eu penso, quem é que tem tempo de sobra?

Julie, a protagonista na casa dos trinta anos de A Pior Pessoa do Mundo, tem muitas dúvidas e um pai indiferente. Eu tenho muitas dúvidas mas na casa dos quarenta descobri que escolher também é ser livre. Meu pai continua indiferente.

Com música e dança deslocadas na rua, Nanni Moretti suspende o tempo em uma das cenas finais de Tre Piani e o atravessa com a loucura da personagem que não suportou ser mãe. Eu imediatamente penso em Fellini e me vejo sentada diante de Amarcord e de E la Nave Va. Subi a montanha mágica de Thomas Mann, folheei Mário Schenberg e me encantei com Bergson, mas até agora não descobri o que é o tempo.

Eu digo que não choro nunca mas sempre me pego chorando. Eu digo que não me rasgo mais e logo em seguida passo uma noite e um dia inteiros me rasgando. No carro a caminho de casa ouço a Tati Bernardi dizer que a potência está justamente em se rasgar. Eu entendo, com a carne, e penso que é melhor viver de peito aberto, ainda que rasgado, do que morrendo afogada.
 
 
* Texto originalmente publicado neste blog em 30 de maio de 2022.

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Holy Spider*

Tenho sonhos elétricos, o pai diz à filha, a movimentação no entorno da mesa à qual estão sentados intensificando a necessidade de foco do espectador na cena que se desenrola no primeiro plano.

E você, quais são os seus sonhos?

Acordo e percebo que algo havia se perdido. Tive um sonho ruim, falo, enquanto conto com palavras as imagens que me fizeram acordar angustiada, aliviada, foi apenas um sonho.

Ruas escuras, muros altos, vielas, labirinto. Outro sonho, cabeças e cabelos cobertos, rostos apreensivos. Procuro, não tem saída. Eu vou arrebentar a sua boceta, diz a legenda, traduzindo o intraduzível. Quem inventou as palavras? Como foi que elas vieram parar nas nossas bocas? Paradoxos do enlouquecimento, elas parecem nunca estar à toa, nunca ser à toa.

A minha casa é dos meus filhos, não é lugar para levar mulher, e os meus olhos se fixam com mais atenção na cena para depois se desviarem do resto do filme. Muito barulho por nada seria um bom título para ele, penso, enquanto os resquícios do áudio derramam uma cagação de regra que levanta uma parede de certezas em dry wall - alvenaria é luxo de outros tempos -, mas aquele título já foi usado há centenas de anos, no século dezesseis, salvo engano, por um texto, esse sim, contemporâneo.

Tenho uma amiga muito poderosa na vida que pelo menos na cama quer ser mulher, ou seja, estar abaixo do homem. Suspendo a respiração para ler com atenção até constatar que é isso mesmo o que está escrito. Inspiro, expiro pela boca, uma, duas, três, quatro vezes. Mas que legenda é essa? De qual roteiro saiu essa lógica? Quem escreveu esse filme longo, repetitivo e chato? Lippy e Hardy, o desenho, penso nele sem parar. A hiena que, ao invés de rir, passa os dias a se lamentar, a se ressentir.

O melhor o tempo esconde, longe, muito longe, mas bem dentro aqui, a voz do Caetano muito alta reverbera dentro do carro, os rastros deixados pelos meus pensamentos marcando o tempo que fica na estrada, Trilhos Urbanos que sucedem uma Elegia, nudez total, todo prazer provém do corpo, como a alma sem corpo, sem vestes, como encadernação.

No final das contas somos vazos preenchidos por vazios de tempo e por palavras que entregam todas as nossas sementes. Aniquilação, destruição, desprezo, humilhação. Medo, ressentimento. Mas do quê? O esforço constante, eterno, derrapante das palavras. Exceto quando cortam, como facas. Annie Ernaux, Virginia Woolf, a recusa da escrita como feminina ou masculina; Cixous, o contraponto. Inspiro e expiro pela boca novamente. Estou cansada. Não sou homem nem mulher, sou gente, e também sou bicho. É assim que eu escrevo, é assim que eu vivo. Gente, como qualquer outra mulher.

O problema é que eles não sabem ler.


sábado, 10 de agosto de 2024

Twist in my sobriety

Mas tá um pouco apaixonada? Tem que estar, né, baby, senão não tem graça. Uma paixonite pelo menos, vai? Olho para a frente e depois para o lado fazendo a curva à direita e deixando a Avenida Ipiranga para trás. Engasgo, respondo, não sei se sou sincera. Paixão, paixonite, amor, qual é a diferença entre essas palavras?

A frase diz em voz alta, gravava cartas de amor em vinil, era nítido que estava muito apaixonado. Mas as cartas eram de amor ou de paixão? Enquanto a água escorre e leva a espuma que recobre as facas que seguro sob o jato d’água, deixo escapar em voz baixa, quais são as palavras que alguém usa para dizer eu te amo?

Toda nudez será castigada e no entanto eu me sinto absolutamente impune dentro da minha, exceto pelo espelho muito quadrado que me olha do alto como um juiz, como o duplo que me olhava de cima, imóvel, na diagonal de um dos cantos da biblioteca excessivamente iluminada onde eu lia O Livro Azul.

As suas roupas são predominantemente pretas e cinza, como as minhas, e estou de volta às imediações da Avenida Ipiranga depois de uma caminhada em linha reta pela Higienópolis. No verso da Maria Antônia seus braços, peito e boca são quase uma poesia, exceto pelo que não é. Árido Movie, você assistiu? As câmeras ao nosso redor nos observam inertes de dentro de suas capas. Veja como pesa. Seguro uma delas com as duas mãos e tudo o que vejo é movimento, o Vietnã se abrindo em imagens e palavras, um livro. E depois? Depois seguir e não voltar, fantasia de quem só se sente real em outras realidades, de quem sente o radical da alteridade como um remédio.

O livro que você me entrega é quase tão pesado quanto as suas câmeras e as histórias que ele abriga saltam das páginas para a mesa de um restaurante peruano barato no centro de São Paulo. Certa vez vi um rato passeando por entre as mesas mas não me importei. Lembro do rato e sigo sem me importar. Só o que me interessa são as crianças que nunca veem o sol e a bailarina que são duas, uma que sorri abertamente longe da casa em que cresceu e outra que é triste perto dela. Por cima da mesa o meu olhar engole as Américas que surgem nas suas palavras da mesma maneira que os seus olhos me mastigam quando você me vê andando nua pelo apartamento minúsculo em direção ao banheiro ou desfilando pela sala da sua casa, escova de dentes elétrica em punho. Deixo claro que tenho duas delas e você ri ainda mais, como uma criança que se diverte com um brinquedo novo.

O nosso jogo é uma brincadeira de criança em corpo de adulto onde só não entram os joguinhos infantis. I Drove All Night no repeat intercalada com a sua voz, chamadas telefônicas como as que fazíamos quando éramos adolescentes. Dirijo mais de uma noite assim, numa ligação com você, mas chego mais tarde do que o esperado e não consigo olhar para aquilo que em você é tão diferente do seu corpo. Você de fato poderia me esmagar como a um brinquedo que não se quer mais, mas no fim sou eu quem não consegue segurar aquilo que o peso das suas câmeras não revela. Só as lentes.

Eu sei que eu te machuquei.


O tempo, lógico.

quinta-feira, 18 de julho de 2024

Losing my religion

Deserto do Saara/Marrocos


São cinco horas da manhã, o mesmo horário do meu fuso ao contrário. Do o
utro lado do mundo eu despertava - literalmente, já que me punha de pé com todos os sentidos prontos para se atirarem do quadragésimo andar -, todos os dias, às cinco horas da manhã.

Eram cinco horas da manhã quando olhei as horas no relógio. Relógio não, celular, pois atualmente quem é que olha as horas num relógio? Posso até responder que eu sim, mas somente às vezes, no mesmo relógio que aquele homem plantado no meio de um deserto insistentemente pediu que eu lhe desse em troca de algo, o homem que eu pude ver, enquanto o carro saía, despido da túnica com a qual havia nos recebido e que nos olhava com um misto de sentimentos que eu não quero nomear aqui. Senti pena dele, senti pena deles.

Cinco horas da manhã, os meus olhos agora muito abertos olham diretamente para a parede depois de terem olhado para a tela. Aprendi que a forma, em associação livre, é tão importante quanto o conteúdo, e que o tempo cronológico, dentro dessa forma, é puramente lógico. Procuro dentro da minha cabeça um lugar para me instalar, um espaço em branco onde nenhum tempo exista, mas o som que atravessa as paredes do quarto me confunde e eu fico girando em falso pelas vielas que me compõem, buscando sem encontrar uma origem e um sentido para o barulho que havia me acordado.


São cinco as pontas da estrela, são cinco as orações diárias. Eram sempre cinco as horas quando eu ouvia o chamado.


Azul cor de mar de revista, verde e vermelha a bandeira, telhados também. Um carneiro é arrastado e grita ladeira abaixo em meio à multidão multicor. Véus, túnicas, rostos expostos e cobertos, olhos que olham com a mesma curiosidade que os nossos. Estranhamento. Um chá muito verde, a menta que me faz lembrar, antes e agora, das coisas mentoladas das quais desde criança eu gostei. Gosto. O chocolate, o chiclete, o sorvete, o cigarro. Familiaridade. Ruas estreitas, um labirinto incrustado numa joia moderna. O nome é lindo e eu gosto de tê-lo dentro da minha boca. Escolho cidades também pelos seus nomes e homens também pelas suas vozes, pelas palavras que utilizam. Mesmo não entendendo nada do que é dito no seu idioma materno eu tento repetir as poucas palavras que ele me ensina como só uma aluna muito aplicada faz. Pronuncio e repito até tentar acertar, até talvez acertar e sentir uma pontada de um imenso prazer íntimo com aquele feito aparentemente simples.

Outra cidade, pintada com a cor do mar da primeira, cujo nome eu giro na minha língua e engulo nos dias seguintes com o sol que cai atrás da montanha que carrega as casas pintadas de azul e com o sangue dos carneiros sacrificados que escorre, abundante, pelo meio-fio. Na outra grande festa não se matam animais, ele me explica depois de alguns quilômetros, o meu esforço para não apagar pesando no ar condicionado.

A terra absorve o sangue, mas não por completo. Eu quero, mas é difícil engolir o carneiro naquela noite. Emagreço. Mais. Muito magra, ela me diz, e eu lembro de um sonho ocre que sonhei ter escrito. Fragmentos, os nossos, abandonados na porta de um quarto. Mais uma vez o tempo lógico. O escritor brinca com as palavras, cria oásis verdejantes no deserto, sóis muito amarelos, dunas que mudam de cor ao longo do dia, da noite, da lua, montanhas cujas formas nos fazem parecer mais insignificantes do que olhar para o céu em noites estreladas. O escritor cria até o que não existe, cria o tempo. Fiat lux, duas palavras, e o mundo começou, da mesma maneira que o jorro de água quente que alcançou o meu corpo inerte sobre a bancada me levou até o início, até o lugar que era somente corpo a ser embalado por mãos macias besuntadas em óleo de oliva e depois esfregado, a pele arrancada, peau de bébé, ela me dizia rindo, um riso genuinamente alegre e doce, diante do meu espanto ao ver pedaços de pele soltos pelos meus braços. Doux, ela falava enquanto me esfregava como a um bebê, como se eu fosse uma boneca agora sentada sobre a bancada, as pernas soltas no ar, os braços abandonados ao longo do tronco, e eu ficava ainda mais espantada ao sentir a lateral direita do pescoço arder sob a bucha com a qual ela me esfoliava, espantada com a força da suavidade e com a minha entrega ao não dizer nada, ao não querer controlar nada, ao desejar apenas que o calor, o cheiro de azeitonas e de argan e as mãos e o riso daquela mulher durassem a eternidade que pudessem durar.

O controle se desfaz como a areia do deserto, que eu devia ter colocado num potinho para trazer comigo. Não, não é como a da praia, é diferente, tem outro movimento, outra textura, outras cores. Escorre pelos dedos num outro tempo, de outra forma. Invade todos os poros, todas as reentrâncias, para depois desaparecer. Não sei aonde vai parar, onde começa, onde termina. Perco o controle, choro ao ver o sol despontar no horizonte, uma meia-lua amarela exuberante, a sensação de poder apanhá-lo e comê-lo como se fosse um quindim, doce, macio, úmido. O sol do deserto é úmido e o das montanhas canta, venta, se faz presente a cada parada, a cada mirante, a cada fotografia. Choro novamente, o controle que vá para o inferno, não me interessa mais saber itinerários, cardápios, não quero mais ter sinal de celular nem notícias de um mundo que não está ali, tátil, visual, sonoro. Quero apenas conjugar tempo e espaço, transformá-los em verbos e pronunciá-los em todas as pessoas.

Toco por alguns segundos com os meus dedos cheios de areia o impossível, o sentido do absoluto sem sentido que é a vida, a pele do meu pescoço, sensível como a de um bebê, recebendo o sol que entra pelo vidro dianteiro do carro. O sol quindim, perecível como a vida, se não comer estraga, a minha pele sabe disso e o engole com todas as letras para depois derramá-lo onde e como bem entender. O eterno retorno, as minhas ausências, as minhas certezas, todas revolvidas.

O parafuso que afrouxa mais uma volta. 

domingo, 12 de maio de 2024

Bologna ou sendo muito feliz na Itália

De repente bateu uma saudade louca desse dia, dessa viagem, dessas ruas, dos prédios iluminados pelo sol que atravessava sem dificuldades o céu de brigadeiro de um domingo do mês de novembro de 2022 e incidia sobre a cidade de Bologna.

Um dia antes, em Florença, eu havia dito para a minha mãe, melhor não esperar muito desse bate e volta até Bologna pois amanhã é domingo e talvez a cidade esteja um pouco morta. Contudo, logo ao chegarmos, percebemos que as minhas expectativas estavam completamente equivocadas, pois a cidade não poderia estar mais viva e vibrante, com as pessoas aproveitando as ruas, o domingo e a vida.
 
Obviamente, Bologna vale muito mais que um bate e volta. Eu diria até que vale a pena morar lá (Bologna é bem mais simpática que a média da região, como já havia me alertado uma amiga que morou um tempinho na cidade). Mas, como não dá para ter tudo, fomos e voltamos no mesmo dia, cumprindo os nossos planos de viagem. 

Para ir de Florença a Bologna é muito simples: basta pegar o trem na Estação Santa Maria Novella (isso se você não estiver de carro, evidentemente) até a Estação Bologna Centrale.
 
Da Estação Bologna Centrale até os principais pontos turísticos é uma caminhada mais do que agradável. Eu diria, aliás, agradabilíssima, já que há uma parada obrigatória no meio do trajeto que inclui, como não poderia deixar de ser, comida, mais especificamente doces que são um carinho, um aconchego, um toque de alegria e de acolhimento para o seu estômago.
 
O nome dessa parada obrigatória é Sebastiano e nós a descobrimos por acaso, no faro. Até hoje recordamos aquilo que eu costumo chamar de "um pedaço do céu" que comemos lá. Sem dúvida, esse momento de doçura foi um dos pontos mais altos do passeio.

Aqui, faço um parêntese para dizer o seguinte: os doces franceses são deliciosas e delicadas obras de arte e, na minha opinião, batem os italianos, só que por muito pouco. Os italianos também são algo de enlouquecer e no quesito croissant, que é algo que eu particularmente amo, a Itália é a responsável pelos melhores croissants recheados com creme que eu já comi na vida (especialmente os do Rivoli Boutique Hotel que, a propósito, é uma excelente opção de hospedagem em Florença).



Trecho da caminhada da Estação Bologna Centrale até a Piazza Maggiore


Vitrine do Sebastiano
 
 
O nosso escolhido...
 
 
cujas fotos foram feitas de vários ângulos.

 
Abrindo o passeio com chave de açúcar.

 
Não posso ver uma plaquinha anunciando uma feira de Natal que já me empolgo e tiro uma foto.
 
 
A meu ver, se há um lugar para o qual sempre vale a pena voltar esse lugar é a Itália. Não é à toa que os turistas a procuram tanto. Fontana del Nettuno.




 
Felizes e contentes
 
 
 


Não resisto a esse tipo de imagem
 
 
 
Já que não dá para experimentar e para comprar todos, o jeito é fotografar e comer com os olhos.
 

 
Piro nas vitrines de comida...
 
 
 
piro nas cores...
 
 
piro nas flores.
 
 


Depois de curtirmos o que havia pela Piazza Maggiori e pelos seus arredores, demos de cara, após passarmos pelas duas torres, com o Santuario di Santo Estefano, localizado na agradabilíssima Piazza Santo Estefano. Entramos, conhecemos o local e então, ao invés de buscarmos um dos restaurantes que estavam na nossa lista para almoçarmos, sentamos num restaurante aleatório nas imediações da igreja para um almoço de domingo ao ar livre com direito ao que alguns chamam de people watching, ou seja, a boa e velha observação de pessoas.

No quesito espaguete à bolognesa, bom, existe toda uma polêmica a respeito e eu não vou entrar nela. Caso você tenha curiosidade, achei este artigo aqui não só interessante como também divertido. O fato é que essa foi a nossa escolha, que não foi ruim (para o melhor espaguete à bolognesa da viagem, recomendo o do Buca Marío, em Florença), mas que foi ofuscada pela alcachofra alla romana (penso que seja esse o nome do prato) que também pedimos.




Santuario di Santo Estefano


Belíssima


Clássico e polêmico


A alcachofra delícia




Piazza Santo Estefano


A tarde caía quando, completamente saciadas mas ainda não satisfeitas, deixamos a praça e fomos em busca da nossa sobremesa, que seria adquirida na Cremeria Santo Stefano, uma daquelas sorveterias deliciosas e premiadas que a gente encontra pela Itália. Recomendo fortemente, assim como volto a recomendar Bologna como um passeio imperdível.


Cremeria Santo Stefano


Cardápio da Cremeria Santo Stefano


Cremeria Santo Stefano


Uhmmmmm

domingo, 28 de abril de 2024

Pérouges ou mais uma cidade de brinquedo

Desde sempre e cada vez mais adoro aquilo que costumo chamar de cidades de brinquedo, ou seja, pequenas cidades, vilas, povoados etc. que mais parecem uma maquete do que propriamente um lugar real. 

A um bate e volta rapidíssimo de trem de Lyon, Pérouges é o protótipo perfeito desse tipo de lugar. Minúscula e encantadora, eu poderia, confesso, até ter passado um dia e uma noite inteiros por lá pois, apesar de ter ficado um bom tempo curtindo o povoado, foi muito difícil dizer para mim mesma, não, agora chega, você precisa ir embora porque logo mais a sua aula vai começar.

Para chegar até Pérouges a partir de Lyon é muito simples: basta pegar o trem na Estação Lyon-Part-Dieu até a Estação Meximieux-Perouges.


Estação Meximieux-Pérouges


Da Estação Meximieux-Pérouges é necessário fazer uma caminhada até Pérouges, ao longo da qual algumas paradas para comprar comida - doces e chocolates mais precisamente - são recomendáveis. A minha principal sugestão é que, antes de qualquer outra coisa, você procure uma padaria cujo nome é La Pause Doucer, a qual fica do lado direito de uma das ruas pelas quais você vai caminhar (saia da estação, suba a rua na direção da igreja e vire à esquerda; siga caminhando pela rua; a padaria fica do lado direito, é envidraçada e muito fácil de encontrar). Uma vez lá, compre um estoque de croissants de amêndoas. Sim, um estoque, para comer ao longo daquele dia e também do seguinte, por um motivo elementar: é o melhor croissant de amêndoas que eu comi ao longo dos meus quarenta e cinco anos de existência. Comprei um na ida e na volta tentei comprar mais, mas falhei miseravelmente, pois que todos os croissants de amêndoas da padaria já haviam ido parar em outras bocas.




Eu e o melhor croissant de amêndoas de uma vida inteira


Cumprida a principal missão do passeio, saia da padaria e siga caminhando. Você vai virar à direita num ponto logo mais à frente e vai começar a subir, andando ao lado de uma estradinha. Não tem erro, tem placas, e você vai avistar Pérouges à direita a partir de um certo momento.

A propósito, um pouco depois do início da subida, à direita, você vai deparar com a Chocolaterie de Perouges. Não perca a chance de entrar e de comprar uns chocolatinhos.


Início da subida

 
Acesso ao vilarejo



 
Para quem leva opções variadas de sapatos na mala (não é o meu caso), na dúvida sobre qual deles usar, pense na palavra "pedras"




Não sei se morador ou se turista


Como cheguei cedo e fui durante a semana, as ruas estavam bem vazias 




Esse sim, um morador








Vista do entorno de Pérouges






O vilarejo conta com a presença de artistas e de artesãs(ãos); não deixe de visitar as lojas que ficam na pracinha. São ótimos lugares para comprar lembranças pessoais e presentinhos. Também na praça há restaurantes que parecem apetitosos, então, vá pensando nisso se puder ficar para almoçar.






Iluminada de alegria


Livraria: algo que jamais falta em qualquer lugar da França


Não vá embora sem provar a Galette de Pérouges